domingo, 2 de março de 2014

Sobre a Aprovação Automática: pronto falei.

Existe numa condição discreta, passando despercebida para uma boa parcela da população uma espécie de batalha entre pedagogos e professores, até porque é bom esclarecer logo que há diferenças. Pedagogos essencialmente são formados em pedagogia, estudam métodos de ensino e os aplicam genericamente em todas as áreas escolares. Quando atuam nas escolas podem vir a ensinar qualquer coisa, ou mesmo compor o quadro administrativo: direção, coordenação, orientação etc. Nas faculdades são os que ensinam disciplinas como Fundamentos da Educação, Didática, Prática de Ensino e supervisionam os estágios dos futuros professores. O pedagogo é basicamente um professor que ensina um outro professor a dar aulas. O professor, por sua vez, pode ser qualquer um que tenha feito algum curso de Licenciatura, nesse caso ele obtém o título numa área específica do conhecimento. No caso Licenciatura em Matemática, Licenciatura em Letras, Biologia, Artes, Música, etc. Então o professor poderá lecionar apenas nessas áreas. Salvo alguns casos excepcionais, como cidades em situações de extrema carência de profissionais, que acabam pegando professores para ensinarem matérias que não são suas respectivas especialidades.

Fiz essa introdução toda acima para tentarmos, ao longo do texto, entender porque certas bizarrices acontecem em nossas escolas. Uma das que percebo quase sempre é algo chamado "progressão continuada", mas que ficou popularmente conhecida como "aprovação automática", que significa isso mesmo que o nome indica. O aluno não será reprovado, mesmo que todas as evidências mostrem que ele não tem a mínima condição de seguir em frente. Na realidade esse caso mostra muito mais sobre a preguiça de se aprofundar em certos métodos, do que um caso de irresponsabilidade, quem quiser entender preguiça e irresponsabilidade como palavras afins, não façam cerimônia. 

O fato é que existem mesmo vários trabalhos acadêmicos, estrangeiros claro, sobre esse tema. Um dos teóricos que podemos utilizar para ficarmos numa fonte que conheço bem, o Philippe Perrenoud, estabeleceu uma mudança radical na dinâmica em salas de aula. E uma das ideias dele consiste justamente em dividir os anos escolares em ciclos que podem ser de 2 em 2 anos, 3 em 3 anos, desde que em tempos iguais, somente ao final desses ciclos o aluno seria avaliado como elegível ou não para o ciclo seguinte. Mas a rigor não quer dizer que ele não sofrerá nenhuma detenção nesse meio tempo. Isso porque a grande diferença dessa concepção não esta aí, no fato do aluno ser simplesmente aprovado, alias o aspecto da aprovação vem a ser, a meu ver, o menos importante disso tudo. Mas antes que eu siga explicando a base do método, farei uma breve explanação sobre a relação de ensino-aprendizagem.


Muitos já ouviram algo como "não há ensino, sem aprendizagem", "ensinando é que se aprende", o que parece importante, já que muitas vezes temos ambas as coisas simultaneamente, mas para efeito da minha demonstração devemos separar por algum momento esses conceitos. A pedagogia tradicional costumava centralizar seus esforços no ensino, nessa condição o grande protagonista é a figura do professor, e este deveria dar brilho, caprichar bastante na sua oratória para expor o conteúdo da aula de maneira que ele pareça bastante claro para os alunos, é a chamada aula expositiva, o professor fala, os alunos anotam, copiam, e raras vezes se sentiam à vontade de tirar alguma dúvida, ou mesmo fazer algum questionamento sobre a exposição do professor. Com o desenvolvimento da Psicologia Cognitiva, os pesquisadores passaram a se preocupar em entender o que faz uma criança aprender. Veja que esses professores antigos jamais pensariam nesse problema. Nunca se perguntavam se os alunos estavam efetivamente aprendendo. Para eles seria um desrespeito pensar que a aula maravilhosa dele não faria o aluno aprender. Afinal alguns alunos tiravam boas notas, quem tirasse nota baixa, não é inteligente o suficiente, não é esforçado. E outras acusações do tipo. Na realidade era um sistema que premiava o esforço. Pois muitas vezes o famoso aluno esforçado não havia entendido a aula, mas como era responsável e estudioso, não saía do quarto até aprender alguma coisa. Mas preocupação com os alunos mais "fracos", o professor não tinha mesmo. Foi essa a grande mudança que as Ciências Cognitivas trouxeram para a pedagogia. Não nos interessamos mais na forma como o professor ensina, queremos entender como é que os alunos aprendem. Todos são capazes de aprender? Parecia que sim, o que provavelmente precisamos fazer é apertar os botões corretos do cérebro de cada aluno. Aprender o mapa do aprendizado, essa parecia ser a chave do problema.


O que nos traz de volta ao Perrenoud, ele concluiu que sempre que pensarmos a Educação e a Pedagogia em termos de conteúdo, o professor jamais sairá do palco central, lembrando que é o professor que detém o conteúdo, ele o transfere generosamente aos alunos, se eles não aprendem é uma injustiça total. Perrenoud pensou, o que os alunos devem se tornar? A palavra que surgiu foi competência, imagino que estejam percebendo a diferença. A ideia não é mais fazer o aluno assimilar um conteúdo, é fazê-lo competente no trato com aquela área do conhecimento. Então ele definiu o que seria um conjunto de competências desejáveis a serem adquiridas naquele ciclo, os tais ciclos que falei acima, e cada competência seria conquistada, sim, a ideia é de conquista, seria trabalhada na forma de aulas problemas. As aulas funcionariam como aquelas reuniões de brainstorm, onde todos participam na solução dos problemas propostos. Há exemplos nos livros dele de atividades até curiosas e desafiadoras, como escrever uma redação inteira sem usar uma única palavra que contenha uma letra qualquer, tipo eliminar a letra E. Como os alunos farão esse trabalho? A solução deve sair dos próprios alunos. Depois os trabalhos seriam lidos para a classe, haveria a exposição da maneira que eles usaram para resolver esse problema. O objetivo dessa atividade seria desenvolver a competência de escrita e vocabulário. Nada parecido com isso é feito nas escolas brasileiras, como já devem estar percebendo. E dizer que o aluno seria aprovado sem mais nem menos é um absurdo, no caso dessa atividade, se algum aluno não obtiver os resultados esperados, vejam que o objetivo da atividade é claro, fácil saber se houve sucesso ou não, no caso de o aluno não conseguir ele vai repetir a atividade, ou seja ele repete a competência, mas suponhamos que esse mesmo aluno, foi ótimo em outra atividade, tipo alguma ligada a uma competência de Matemática, daí sim ele segue adiante. O importante que ao longo do ciclo o aluno chegue ao final dominando todas as competências necessárias da etapa em questão. 

Quais as conclusões que podemos extrair disso tudo? Que para tudo isso funcionar daria um trabalho danado, deveria haver uma seleção mais rigorosa das competências que são realmente indispensáveis aos alunos, pois cada competência dessa levará um número maior de aulas para serem trabalhadas. O professor deverá estabelecer prazos e planejamentos mais concretos, não podemos cair no laissez faire. Ou seja, tanto professores quanto alunos deverão trabalhar muito mais para a coisa funcionar. As classes deverão conter menos alunos, a maioria das atividades seriam feitas em grupos, e posteriormente todas debatidas com todo mundo. As notas devem ser dadas todos os dias, provas bimestrais, semestrais estariam abolidas, já que todas as atividades funcionam como provas, até um espirro é avaliado. Isso é interessante pois o professor pode identificar o exato momento em que o aluno apresenta a dificuldade que esta atrapalhando o progresso, e atacar esse problema em tempo real, não depois de 2 meses de problemas acumulados. Outra consideração a fazer sobre o que Perrenoud entende por competência é que alem de você ter domínio das que você trabalhou junto dos colegas e professores, o aluno deve ser capaz de extrapolar aqueles conceitos para outras situações diferentes, coisa que não acontece numa abordagem conteudista.

No geral é bastante atraente essa ideia quando tomamos conhecimento das partes mutiladas, eu especialmente até gosto bastante. E não aguento ver gente distorcendo ideias por puro oportunismo, seja de ordem política, seja por preguiça e desonestidade intelectual, e é claro que como nem todos os cidadãos estudam Licenciatura na faculdade, acabam não entendendo de onde surgem certas ideias. E criticam com toda razão. Não existe essa bizarrice que implantaram em nossas escolas. É claro que ainda há muito mais coisa a falar sobre metodologia de Perrenoud, mas vou deixar para um post futuro. Acho que as informações que deixei aqui já atendem a necessidade de pelo menos mostrar o outro lado dessa questão. Não acho que um aluno deva ser reprovado sumariamente, muitas vezes por causa de uma única matéria. Mas isso tem uma distância enorme em relação a passar de ano sem saber nada. Nesse caso temos as retenções, essa deve ser aplicada sim. Claro.